Escrevo todos os dias. Há mais de sessenta anos! É o meu encontro definitivo comigo mesmo. Conforta-me, anima-me, refaz a esperança e a capacidade de sonhar.
Nem sei como agradecer devidamente à minha mãe que arrancou a primeira página do meu caderno de linguagem no primeiro ano primário, onde eu deixara rastros do uso da borracha, para que eu refizesse a redação despida de rasuras. Ela mesma que, nos meus dez anos, fez-me cursar datilografia na Escola Remington, onde D.Amélia Lima Lopes era rígida gestora do aprendizado. Meu presente de aniversário aquele ano foi a Olivetti que usei até poder comprar a IBM de esferas, ambas substituídas pelos mágicos computadores.
Tenho a certeza de pensar melhor ao digitar do que ao me exprimir verbalmente. Acompanhar a formação das palavras, das frases, do texto que vai tomando forma à medida em que se dedilha o teclado é uma das melhores sensações existenciais que se pode experimentar. Nunca tive dificuldade em escrever. Sem modéstia, bom datilógrafo, melhor digitador.
Comecei a refletir sobre o ofício de escrever ao ler o artigo “Eterna lição de casa”, de Joca Reiners Terron (FSP 7.2.16, p.C8). Partilho da opinião de Simon Leys, pseudônimo do escritor e sinólogo belga Pierre Ryckmans (1935-2014), de que escrever me converte num “scholé”, verbete grego para designar “a condição de um indivíduo que é dono de si, que tem livre disposição de si”. Muito ao contrário da postura de quem vê a escrita como castigo: “Escrever é ser condenado a fazer lição de casa por toda a eternidade”.
As palavras são facilmente capturadas, surgem espontaneamente na consciência e saem aos jorros. Muitas vezes, sem prévia censura, o que já foi intuído por Marguerite Duras, a belga de “Memórias de Adriano”: “escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos”.
Lygia Fagundes Telles, a maior escritora brasileira, repete sempre um texto de seu amigo Drummond: “Lutar com a palavra é a luta mais vã. Mas continuamos nela, mal rompe a manhã”. Cito de memória. Mas o sentido é esse. Tirassem-me a possibilidade de escrever a cada dia, estaria sepultada a minha capacidade de sonhar. E sem sonho não se vive.
Fonte: Jornal de Jundiaí | Data: 24/03/2016
JOSÉ RENATO NALINI é secretário da Educação do Estado de São Paulo. E-mail:imprensanalini@gmail.com.