A escassez de recursos humanos e as corporações profissionais

Após três décadas em que a economia brasileira teve desempenho baixo e irregular, vivendo apenas breves episódios de calmaria, estamos quase completando uma década de novas perspectivas para o Brasil. Parte significativa dessas perspectivas vem do fato de que o país tem crescido e reduzido desigualdades de toda ordem, fortalecendo o mercado interno com a decisiva participação de segmentos da sociedade que foram incorporados aos mecanismos formais de produção e de geração de renda.

O desempenho da economia diante da crise internacional e a projeção do país no ranking das maiores economias do planeta são evidências da nova realidade, que supera as fragilidades passadas e o potencial nunca transformado em realidade.

A nova condição vivida pelo Brasil logo evidenciou as insuficiências da infraestrutura e da disponibilidade de recursos humanos. O caso é parecido com o daquela roupa apertada que começa a soltar as costuras e botões quando o seu dono melhora de vida e pode comer melhor.

A ausência de investimentos e a incapacidade de planejar, desenvolver e manter sistemas, vias e terminais de transporte, são percebidas por todos de forma direta ou indireta. Em muitos casos, a falta de visão estratégica de gestores públicos contribuiu para o estado atual. Mesmo no quesito obras físicas, o tempo é um parâmetro relevante, mas se mede em meses ou (poucos) anos.

No lado da escassez de recursos humanos, o tempo se mede em escalas de muitos anos e até décadas, e as causas da situação que vivemos vêm de longe.

A preparação de recursos humanos (chamados de “mão-de-obra”) para o trabalho sempre foi vista pelas elites econômicas como processo de caráter meramente instrumental, a ser praticado da forma mais simples e barata que fosse possível, e na exata medida necessária para suprir as demandas imediatistas da produção. Isso se estendia do chão de fábrica às atividades técnicas e gerenciais mais complexas, alcançando desde as funções menos qualificadas da atividade econômica até as que exigem nível superior. Uma evidência disso é a antiga demanda por engenheiros capazes de exercer pragmaticamente funções muito específicas nas empresas, mas muito aquém das competências desenvolvidas na sua formação.

Com a sofisticação tecnológica dos meios de produção, as mesmas elites passaram a entender que a falta de base escolar que possa sustentar a formação para o trabalho é uma deficiência grave, que não pode ser suprida por simples treinamentos. Assim, a ausência e as deficiências relativas à Educação Básica passaram a fazer parte da agenda das elites econômicas, que modernizaram o seu discurso e a sua compreensão deste processo.

A formação de recursos humanos no nível superior se tornou também mais demandada no quadro do Brasil de hoje, em função da economia e das políticas públicas. Em muitos casos, a escassez de pessoas qualificadas a exercerem atividades laborais neste nível é grave e ameaça o futuro do país. Merece registro, ainda, o fato de que o Brasil tem, em comparação com os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a menor proporção da população adulta com nível superior.

A gênese desta situação é, em grande parte, coincidente com a da escassez geral de recursos humanos em todos os níveis, mas conta com uma contribuição especial das corporações profissionais, cujo comportamento de proteção do mercado para o grupo já estabelecido tem forte impacto na expansão da oferta de Educação Superior, particularmente em algumas áreas de atividade em que estas corporações têm maior força política.

Em consequência do quadro acima exposto, a expansão da oferta de Educação Superior e o forte aumento da proporção da população brasileira com formação superior são requisitos indispensáveis para o desenvolvimento do país nos campos humano, social e econômico. No entanto, as corporações costumam perceber tal expansão como ameaça às condições de que usufruem no mercado de trabalho. O discurso prevalente nestes meios realça o “excesso” de profissionais disponíveis. O mais interessante é que este discurso não muda com o comportamento da economia, mas apenas se adapta. Alegações do tipo “o Brasil não precisa de tantos engenheiros” ou “onde haverá emprego para todos estes administradores?” ou “com o número de advogados atual já não há lugar para todos no mercado” ou “o Brasil tem mais escolas médicas que os Estados Unidos” ou “as projeções mostram uma demanda de tantos dentistas em tal região do país” são variantes deste discurso.

Naturalmente, a questão da qualidade da formação é fundamental, e não está em discussão de forma alguma. O país não pode abrir mão desse ponto, objeto de intensa atividade por parte do setor público com os sistemas de avaliação, de regulação e de supervisão da Educação Superior. Muitos progressos têm sido obtidos na implantação, na consolidação e no aprimoramento destes sistemas. Para isso, a contribuição de toda a sociedade é sempre muito importante, e todos os segmentos devem participar. Este também é o caso das corporações. Mas não se pode aceitar que tal participação seja mero instrumento para estabelecer mecanismos de reserva de mercado ou de competição por meio do Estado.

As impressões digitais desta ação restritiva praticada pelas corporações em relação à formação de (muitos) mais egressos de cursos superiores podem ser observadas nos seus efeitos. O suposto excesso de engenheiros se transformou em poucos anos (o tempo de formação de uma turma!) em escassez que obriga as empresas a trazer estrangeiros para exercer esta função no Brasil e a contratar serviços de engenharia no exterior.

A falta de médicos para atender aos sistemas de saúde público e privado é aguda. Mais séria em regiões mais distantes dos grandes centros, afeta até as grandes cidades nos Estados mais ricos da Federação. Os números são conhecidos: o Brasil tem cerca de 1,8 médicos por mil habitantes, enquanto que os Estados Unidos têm 2,6 e a Argentina tem 3,2 médicos por mil habitantes. O Sistema Único de Saúde corre o risco de inviabilidade pela indisponibilidade de médicos. Um novo esforço para formar os médicos de que o país precisa deverá ser anunciado em breve, e a corporação médica já está se opondo por antecipação. Este esforço está sendo planejado para alcançar a marca de 2,5 médicos por mil habitantes no ano de 2020. Mas a carência verificada hoje exige outras medidas urgentes, que podem incluir a atração de médicos do exterior. Para isso, será necessário revalidar os seus diplomas no Brasil, usando um mecanismo desenvolvido pelo governo federal, capaz de aferir a competência profissional dos candidatos, em articulação com grande número de Universidades públicas (que têm competência legal para a revalidação de diplomas) e com a colaboração de especialistas em Educação Médica (que têm a competência técnica para avaliar). Diga-se de passagem que a implantação deste mecanismo – o programa de avaliação denominado REVALIDA – teve oposição explícita da corporação médica, inclusive com mobilizações no Congresso Nacional.

Outra evidência do papel exercido pelas corporações  sobre a formação superior está documentada na grande quantidade de atos exorbitantes praticados na defesa da reserva de mercado para profissionais e na imposição de limites artificiais aos novos formados. São exemplos destas práticas: pressões para contratação de docentes com formação na área do curso, mesmo para a docência em áreas de natureza não exclusiva; exigências ilegais referentes aos docentes e coordenadores de cursos; desrespeito à legislação nos pedidos de registro profissional de egressos de cursos novos; entre outros.

Grande parte dos atos praticados pelas corporações tem como pretexto a defesa da qualidade da formação dos egressos. No entanto, há situações em que a verdadeira atuação corporativa se reveste de caráter formal, sem qualquer camuflagem. Isto ocorre, por exemplo, quando as condições de remuneração dos docentes do curso são critérios para manifestação favorável nos processos regulatórios referentes aos cursos novos ou já existentes.

Em conclusão: a restrição à expansão da oferta de cursos superiores e, portanto, à disponibilidade de muito mais pessoas aptas a exercer funções essenciais no mundo do trabalho é mais um presente que as corporações profissionais têm dado ao país.

Quanto às características particulares da Educação Superior no país a algumas outras questões referentes aos modelos de cursos e seus objetivos formativos – temas da maior importância – vamos deixar para outra hora.