O tema “precatórios” passou a interessar muitos brasileiros. Um sistema complexo, invenção tupiniquim, privilegia o todo poderoso Governo que se sente acima da totalidade dos demais devedores. Cumpre suas obrigações quando quer e da forma preferida. Por isso é que os credores e seus advogados chamam de “calote” as seguidas alterações da Constituição, destinadas a procrastinar a satisfação dos débitos já consolidados.
A imensa fila dos credores e a dificuldade na percepção do que é devido criou uma fórmula perversa e bem aproveitada por aqueles que farejam a possibilidade de lucrar sem muito esforço. O comércio paralelo dos precatórios.
Muitos credores alimentares, aqueles que tiveram de mover ações para compelir o Estado a reconhecer o seu direito, não conseguem vislumbrar o dia em que receberão o dinheiro que o Governo se viu obrigado a pagar, após o calvário das quatro instâncias da Justiça brasileira.
Justamente porque não há data prevista para o pagamento, os infelizes credores são alvo de um comércio cruel. Vendem os seus créditos, desenhados pelos interessados como pretensos e incertos, por um valor muito inferior ao real.
Em São Paulo, a situação gerada por esse negócio é causa do caos apontado por muitos interessados. São mais de 220 mil processos de execução de dívida estatal em curso. O edifício que abriga o setor não comporta a reunião de todos os volumes, pois os autos raramente são poucos. O Judiciário é o poder mais antiecológico da República. Tudo vira papel, tudo faz crescer o caderno processual que deveria conter apenas o essencial. Em virtude disso, o último volume fica num pavimento e os demais em andares inferiores.
Quando os advogados procuram os primeiros volumes, em busca do endereço dos autores das ações, o funcionalismo do Tribunal de Justiça é obrigado a se locomover até outros pavimentos. Essa busca pela localização dos eventuais cessionários de crédito se faz também por um sem número de estagiários, até de “motoboys” que não são estudantes de direito e que não poderiam compulsar autos processuais.
A balbúrdia faz com que o andamento dos serviços normais sejam interrompidos, enquanto o trânsito pelo prédio causa turbulência e produz maior procrastinação ainda.
Depois de localizado o nome do credor, este se vê assediado por cartas, telefonemas e mensagens acenando com o “bom negócio” da venda do seu crédito. Muitos infelizes, desalentados diante da aparente insolvência do Estado e disfuncionalidade do setor, cedem seus créditos por valor simbólico.
Esse é apenas um aspecto que também precisa ser analisado por aqueles que pensam num esquema de maior eficiência para essa questão. Sem falar que o Judiciário se vê sobrecarregado com uma função que não é sua. Assim como ele não é cobrador de dívidas do governo e, portanto, nunca deveria receber as milhões de certidões de dívida ativa que dão origem a esse “mar sem fim” de executivos fiscais, menos ainda deveria se responsabilizar pelo pagamento.
Judiciário existe para julgar, não para administrar problemas de outros poderes. De certa forma, os governos atuam como se isso não lhes dissesse respeito. Quando o problema começa muito antes: a imprevisão para saldar dívidas decorrentes, na maior parte das vezes, de equívocos ou de inconsequências perpetradas por reiteradas gestões.
As ações movidas contra o governo decorrem de más práticas. De atos normativos editados sem análise das consequências. Sem falar da defesa pífia promovida pelo próprio ente estatal quando promove expropriações e não consegue reduzir o montante indenizatório àquilo que a Constituição prevê: valor prévio e justo. Por causa de má administração, descontrole, inércia, ignorância ou conivência, quantas vezes o Governo não paga muitas vezes mais ao expropriado, em relação àquilo que o objeto da expropriação realmente vale.
Assim, não é suficiente julgamento pelo STJ a reconhecer que os precatórios dados em garantia no âmbito de execução fiscal deva ser considerado pelo seu valor de mercado e não pelo seu valor de face, para trazer harmonia ao tema. É preciso muito mais. É urgente alertar o credor de que ele não deve ceder seu crédito por valor simbólico. Fazer com que os Governos assumam sua responsabilidade e ofereçam ao Judiciário a infraestrutura necessária a fazer face a tarefas que não são da Justiça, mas ela as herdou, como prima-pobre de um Estado que só tem um poder: aquele que tem a chave do cofre e que se chama Executivo.
Não para inflar ainda mais o Judiciário com mão de obra que depois restará desanimada ante a falta de perspectivas, a ausência de um plano de carreiras e a crescente falência da autoestima. O que se pretende é que o Governo, com seus tentáculos, encontre fórmulas de oferecer um pronto-socorro para que o Judiciário não seja responsabilizado por uma fatura que não é sua. Mas é fruto de inexata compreensão das funções estatais e de que um verdadeiro Estado de Direito de índole democrática precisa se alicerçar na independência e harmonia entre os Poderes.
Enquanto não se adentrar de verdade na problemática da questão dos precatórios, continuará a grita, o clamor dos injustiçados, a insatisfação dos interessados e a perplexidade de quem herdou essa endless task, sem condições e sem qualificação para dar conta dela com a eficiência desejada.