Os 50 anos da Formatura da Primeira Turma de Alfabetizados pelo Professor Paulo Freire, em Angicos

Há exatamente 50 anos, no município de Angicos, no Rio Grande do Norte, na presença do então Presidente da República, João Goulart, do Ministro da Educação Paulo de Tarso Santos, do Governador do Estado, Aloízio Alves, e do Secretário da Educação, Calazans Fernandes, , ocorreu a formatura da primeira turma de adultos alfabetizados pelo Professor Paulo Freire e por sua equipe de monitores do Departamento de Extensões Culturais da Universidade Federal do Recife. Angicos  foi escolhida para a experiência pioneira de combate ao analfabetismo que atingia 70% da população do Estado e 75% do município.

Conforme conta Ana Maria Araújo Freire, ou Nita Freire, em seu extraordinário livro “Paulo Freire. Uma História de Vida” (2005 – Editora Villa das Letras), o método criado consistia de três etapas, investigação, tematização e problematização: (abre aspas)

“As dezessete palavras geradoras, tiradas do contexto da situação sociológica, da linguagem dos/as alfabetizados/as de Angicos, dentre cerca de quatrocentas delas anotadas nos diálogos preparatórios, foram, após análises dos psicolinguistas, sociólogos e pedagogos da equipe do SEC – Serviço de Extensão Cultural – da Universidade do Recife:

BELOTA-MILHO-EXPRESSO-XIQUE-XIQUE-VOTO-POVO-SAPATO-CHIBANCA-SALINA-GOLEIRO-TIJELA-COZINHA-JARRA-FOGÃO-BILRO-ALMOFADA-FEIRA (fecha aspas)

Carlos Lyra, um dos monitores, explica: (abre aspas)

“Como o método é audiovisual, fazemos fichas coloridas, para projetar contendo situações de trabalho próprias ao grupo e com palavras-chave. Esta projeção pode ser feita por epiadiascópio, retroprojetor, projetor opaco, projetor de diafilme (a querosene), ou por qualquer outro tipo de projetor, mesmo caseiro. (A importância do projetor é muito grande. È a melhor maneira de fazer gravar uma palavra…

Na pesquisa de Angicos 66 adultos informaram que iam aprender a ler e escrever “para melhorar de vida”; 26 “para ser motorista”; 23 para “ler jornal”; 20 “para ser professor”; outras 20 “para ser boa costureira”; 18 “para ficar sabendo”; 17 “para escrever cartas, 10 “para votar”; 7 “para dirigir-se”; 4 “para ser músico” e 4 “para ler a Bíblia”.” (fecha aspas)

De um total de 300 alfabetizados, 156 eram homens e 143 mulheres, 159 casados, 130 solteiros, cinco viúvos, três amasiados. Quanto às suas ocupações: 94 domésticas, 46 operários, 38 agricultores, 24 artesãos, 18 serventes de pedreiro, 15 pedreiros, sete comerciantes, três motoristas, três carpinteiros, 10 lavadeiras de roupa, três bordadeiras, sete funcionários, uma parteira, dois mecânicos, um vaqueiro, um soldado, uma prostituta, um jornaleiro e cinco desocupados.

O Curso de Formação de Pessoal foi feito sob a liderança de Marcos Guerra, com total apoio da universidade.

Em 1963, a convite do Ministro Paulo de Tarso, Paulo Freire foi levado a realizar uma campanha nacional de alfabetização. Em 21 de janeiro de 1964, por meio do Decreto-Lei 53.465, instituiu-se o Programa Nacional de Alfabetização mediante o uso do Sistema Paulo Freire. Um dos primeiros decretos do Governo Militar instalado após o golpe de 1º. de abril de 1964 foi o Decreto de 14 de abril de 1964 que revogou o Decreto que instituiu o Programa Nacional de Alfabetização. (abre aspas)

“A consequência maior de sua luta por um Brasil melhor e mais justo levou-o a partir de seu país, a deixar para trás a sua cidade querida, quando tinha acabado de completar 43 anos de idade, escreve Nita Freire: “Seu ‘pecado” foi alfabetizar para a conscientização e a participação política. Alfabetizar para que o povo emergisse da situação de dominado e explorado e que assim se politizando pelo ato de ler a palavra pudesse reler, criticamente, o mundo. Seu difundido ‘Método de Alfabetização Paulo Freire’ tinha suporte nessas ideias que traduziam a realidade da sociedade injusta e discriminatória que constituímos. E que precisava ser transformada. Perseguido, Paulo precisou, para preservar a sua vida, partir para um exílio de mais de quinze anos.” (fecha aspas)

É muito bonita a forma como Paulo Freire desenvolveu o seu método conforme ele um dia relatou em entrevista ao Pasquim: (abre aspas)

“o meu menino mais novo… tinha dois anos, e havia um reclame na televisão de Nescau, em que aparecia a lata do Nescau e havia uma cançãozinha que dizia “Nescau, Nescau..” não me lembro mais do resto. Um dia eu ia com ele sentado no meu colo e quando o jipe fez uma curva numa rua, havia um imenso placar trepado em cima de uma dessas estaçõezinhas de tomar ônibus, com a lata de Nescau, e quando o jipe voltou, ele olhou e disse “Nescau, Nescau” e cantou a cançãozinha. Quer dizer, ele leu a palavra. Então isso me deu mais força ainda. Então eu fiz a minha primeira experiência com Mãe. Era a nossa cozinheira, uma mulher formidável… Eu perguntei a ela se ela gostaria de dar uma contribuição, me ajudando a procurar um caminho melhor para o povo brasileiro a ler e escrever.  E ela disse que aceitava. Ai então eu a levei para a minha biblioteca e projetei um menino desenhado. Olha gente, não por mim, e escrito embaixo menino.. Eu disse “Maria, o que é isso?” Ela disse “é um menino.” Eu disse “OK, é um menino”. Então eu tirei aquele desenho e apresentei o segundo: o mesmo menino, escrito embaixo meni. Deixei projetado algum tempo e disse “o que é isso”, e ela disse “é um menino” de novo. Eu disse “mas então tem alguma diferença grande em tudo isso que está aí na parede”? Tem alguma diferença em relação ao que eu projetei antes? “Ela disse “tem, aqui ta faltando um pedaço”. Aí eu projetei um terceiro desenho, que tinha escrito meno. Aí eu disse “e agora, Maria?” ela disse “agora falta o do meio”. Apresentei um outro com nino. E ela disse “agora falta o princípio.” Quando ela disse isso, ela disse: “dotor, tô com a cabeça doendo” (risos). “Mãe, eu disse, a cabeça dói, porque tu trabalhaste agora diferentemente. Tu trabalhas o dia todo nessa casa, lavas tudo e não te cansas. Mas, agora, esse trabalho é diferente. Se eu fizer o teu trabalho eu me canso. Mas uma coisa que está errada é que eu não faço o teu e tu não fazes o meu. E um dia vai chegar em que eu faço o teu e tu fazes o meu. E a gente cansa menos.” Eu agradeci a ela e ela me deu um cafezinho. Aí eu disse a mim mesmo “não tem nada de introjetar e extrojetar”, o negócio é na base da compreensão crítica da palavra. E aí fui em frente. E comecei a fazer as primeiras experiências já a nível assim crítico. O primeiro grupo com que eu trabalhei me deu resultados extraordinários. E nunca mais parou. Mas você vê o seguinte aí: que aí a questão não era somente técnico-metodológica, mas a questão de fundo aí é a capacidade de conhecer, associada à curiosidade em torno do objeto. Essa é a minha insistência. O resto são os melhores meios de que tu te serves para ajudar a curiosidade de saber. É a curiosidade que tem que ser estimulada … É a reinventividade.” (fecha aspas)

O sentido maior da contribuição do Professor Paulo Freire, que em seu retorno ao Brasil como Professor da Unicamp, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como Secretário da Educação do Governo Luiza Erundina, criador do MOVA e de tantas outras iniciativas, foi muito bem captado pelo escrito de Frei Betto na quarta capa da “Pedagogia da Autonomia” nas edições do Brasil e Itália, denominada: “Obrigada, Professor” (abre aspas)

“Foram as suas ideias, professor, que permitiram a Lula, o metalúrgico, chegar ao governo. Isso nunca acontecera antes na história do Brasil e, quiçá, na do mundo, exceto pela via revolucionária. Falo da eleição a presidente da República de um homem que veio da miséria; enfrentou, como líder sindical, uma ditadura militar; fundou um partido de esquerda numa nação onde a política pública sempre foi negócio privado da elite.

No dia da posse, ao discursar do púlpito do Palácio do Planalto, Lula declarou que não era resultado de si mesmo, mas da história de luta do povo brasileiro. É claro, professor, que não ignoramos a reação indígena à chegada do colonizador, fosse ele português, francês ou holandês; os quilombos dos escravos libertos; as revoltas populares que marcaram o período pré-republicano, como a Rebelião Mineira liderada por Tiradentes. Não olvidamos anarquistas e comunistas, a Coluna Prestes, a Aliança Nacional Libertadora, a Ação Católica, o ISEB e as Ligas Camponesas.

Mas a sua pedagogia, professor, permitiu que os pobres se tornassem sujeitos políticos. Até então, o protagonismo dos pobres tendia ao corporativismo ou não passava de revoltas desprovidas de um projeto político abrangente. Assim, eles só se destacavam como figuras de retórica no vocabulário da esquerda.

Marx e Engels eram intelectuais (e é bom lembrar que Engels era também empresário bem sucedido). Lênin, Trotsky e Mao também eram intelectuais. Che era médico e Fidel, advogado. Em nome dos pobres, e quase sempre a favor deles, os intelectuais comandavam. E os pobres eram comandados.

Graças às suas obras, professor, descobriu-se que os pobres têm uma pedagogia própria. Eles não produzem discursos abstratos, mas plásticos, ricos em metáforas. Não moldam conceitos; contam fatos. Foi o senhor que nos fez entender que ninguém é mais culto do que outro por ter frequentado a universidade ou apreciar as pinturas de Van Gogh e a música de Bach. O que existe são culturas paralelas, distintas, e socialmente complementares. O que sei eu dos circuitos eletrônicos deste computador no qual escrevo? O que sabia Einstein sobre o preparo de um bom feijão tropeiro? No entanto, a cozinheira pode passar a vida sem nenhuma noção das leis da relatividade. Mas Einstein jamais pôde prescindir dos conhecimentos culinários de quem lhe preparava a comida.

O pobre sabe, mas nem sempre sabe que sabe. E quando aprende é capaz de expressões como esta que ouvi da boca de um senhor, alfabetizado aos 60 anos: “Agora sei quanta coisa não sei”. O senhor, professor, fez com que o pobre conquistasse vez e voz, soubesse que sabe, e que seu saber é tão intelectual quanto o daqueles que, doutorados em filosofia ou matemática, ignoram como assentar a laje de uma casa, tecer um cesto de vime ou semear o trigo na época certa.

O senhor fez os pobres conquistarem autoestima. Graças ao seu método de alfabetização, eles aprenderam que “Ivo viu a uva” e que a uva que Ivo viu e não comprou é cara porque o país não dispõe de política agrícola adequada e nem permite que todos tenham acesso à alimentação básica. E só o pobre sabe o que significa passar fome. Por isso, professor, foi preciso que um pobre chegasse ao governo para priorizar o combate à fome e adotar como critério de êxito administrativo o acesso de toda a população a três refeições diárias.

O senhor nos ensinou que ninguém ensina a ninguém, mas ajuda o outro a aprender. Graças ao seu fórceps pedagógico, extraiu a pedagogia do oprimido e sistematizou-a em suas obras. Pois o arrancou da percepção da vida como mero fenômeno biológico para a percepção da vida como processo biográfico. Os pobres fazem história, como demonstram os quarenta anos de atuação dos movimentos sociais que levaram Lula à presidência. Foi a sua pedagogia de conscientização (na verdade, a dos pobres que, repito, o senhor sistematizou) que possibilitou a organização e a mobilização dos excluídos. Deu consistência dinâmica às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), aos movimentos populares, às oposições sindicais, aos sindicatos combativos, às ONGs, aos partidos progressistas.

Ao longo das últimas quatro décadas, seus “alunos” foram emergindo da esfera da ingenuidade para a esfera da crítica; da passividade à militância; da dor à esperança; da resignação à utopia. Convencidos pelo senhor de que são igualmente capazes, eles foram progressivamente ocupando espaços na vida política brasileira, como militantes das CEBs, do PT, do MST e de tantos outros movimentos.

Lula, professor, é a expressão mais notória desse processo. Daí a empatia que havia entre ele e o senhor. O senhor forneceu-lhe as ferramentas e ele, como bom torneiro-mecânico, fez o protótipo da chave que abriu aos oprimidos as portas da política brasileira. Basta conferir o atual ministério, integrado por gente que veio daquilo que a elite denomina “escória”: Marina Silva, do Meio Ambiente, foi seringueira e aprendeu a ler aos 14 anos; Miro Teixeira, das Comunicações, foi criança de rua na Praça Mauá, no Rio; Olívio Dutra, das Cidades, foi militante da Pastoral Operária e bancário; Ricardo Berzoini, da Previdência, também foi bancário, assim como Luiz Gushiken, da secretaria de Comunicação; Benedita da Silva, da Assistência e Promoção Social, foi favelada e empregada doméstica; José Fritsch, da Pesca, veio das Comunidades Eclesiais de Base; Jaques Wagner, do Trabalho, foi técnico em manutenção; Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, foi técnico em mecânica. 

Por este novo Brasil, muito obrigado professor Paulo Freire.” (fecha aspas)

Podemos perguntar: Como se encontra a alfabetização hoje?

No momento em que homenageamos o cinquentenário da primeira turma de formandos alfabetizados pelo Professor Paulo Freire, é importante saber quanta falta para a população brasileira se tornar 100% alfabetizada.

Nos últimos 20 anos, a taxa de analfabetismo dentre as pessoas de 15 anos ou mais passou de 17,7% em 1992, para 12,4 % em 2001 e 8,6% em 2011, correspondendo a 12,9 milhões de pessoas. A proporção de analfabetos de 15 anos ou mais, em 2011, era 10,2% na região Norte; 16,9% na região Nordeste; 4,8% na Sudeste; 4,9%  na Sul, e 6,3 na Centro-Oeste. Era de 6,5% na área urbana e 21,2% na rural; de 8,8% entre homens e, 8,45 entre as mulheres. Na população branca atingia a 5,3% e entre pretos ou pardos a 11,8%.

Na mesma linha de decréscimo, no município de São Paulo, a taxa de analfabetismo entre as pessoas de 15 anos ou mais passou de 4,5%, em 2000, para 3,2% em 2010, ou seja, caiu de 354.049 para 281.847 pessoas, respectivamente.

A melhor homenagem que podemos prestar a Paulo Freire será perseguirmos nessa luta multiplicando os esforços em todos os níveis de governo para erradicarmos do Brasil o analfabetismo, no mais breve espaço de tempo possível.

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