Os mortos e os vivos

Já ouvimos muitas vezes essa afirmativa. Somos a continuidade daqueles que se foram. Não inventamos nada. Apenas prosseguimos na caminhada. Valemo-nos de uma longa e incansável construção do marco civilizatório. Quando procuramos mudar tudo, quase sempre nos arrependemos.

 

Alguns há que repudiam o passado. Mas renegar aquilo que se fez e que nos comanda é perigoso. Veja-se o que se pretende em termos de legislação. Reescrever a Constituição, para que ela abrigue novos valores. Os atualmente inscritos no pacto federativo foram eleitos pelos constituintes que nos representaram. Eles estavam pensando para o futuro. Se viermos a alterar a aliança que nos mantém unidos, estaremos também atuando para o porvir. E a mudança logo será passado. 

Esse dilema passou pela cabeça dos Pais Federalistas dos Estados Unidos. Madison perguntava: “Se podemos estabelecer que gerações subsequentes tratarão com soberano desprezo nossas escolhas feitas pensando no futuro, por que haveríamos de pensar mais no futuro do que no passado?”. 

A resposta é dada por John Elster e sob a forma de paradoxo: cada geração deseja ser livre para obrigar as suas sucessoras, sem estar obrigada por suas predecessoras. É da natureza humana considerar-se imbatível, a geração mais correta, menosprezando as anteriores. Hoje, os tempos nos conduzem a isso: uma criança do século 21 sabe mais do que um sábio do século 14. Mas deveríamos prestar mais atenção ao passado. Já fomos melhores e não faz muito tempo. É só olhar São Paulo. 

A cidade está tomada por drogados e infelizes seres humanos que ocupam todos os espaços, vivendo nas ruas, ali defecando, consumindo entorpecente, procriando. Não há mais cartões postais em São Paulo. Só o retrato do fracasso das políticas sociais. O drama da exclusão, que alguns defendem como “o direito de morar na rua”. Como se isso fosse dignidade humana. 

Não era isso que os mortos queriam. Eles deixaram marcas e diretrizes, sem a intenção de nos governar. Mas seus ensinamentos nos facilitariam governar-nos a nós próprios. Parece que não conseguimos assimilar essa herança.