Nossa era pós-moderna, pós-positivista, pós-dever só não chegou à pós-pobreza. Esta continua presente, seja sob a forma da indigência material, seja travestida de miséria moral. Houve o esvaziamento da esfera pública, o descrédito em relação a toda atuação estatal, a emergência de uma cultura narcisista e egoística. A invisibilidade, paradoxalmente, ocupa cada vez maiores espaços. O outro é objeto da nossa indiferença, muito além e acima, em termos depreciativos, do nosso desprezo.
O que interessa é a busca incessante do próprio interesse. O outro é um problema exclusivamente alheio. Não me afeta. A consecução do conforto e do bem-estar se sobrepõe a qualquer preocupação com o semelhante. As relações refletem o descompromisso. Acabaram as grandes amizades, as ligações consistentes entre pessoas do mesmo tronco familiar, que atravessavam gerações. Hoje tudo é soft, é light, é tênue, é leve.
Experimente-se relatar uma situação calamitosa, seja no plano da intimidade afetiva, seja no terreno das enfermidades. Enquanto houver a atratividade do curioso, do folclórico, do picante, existirá atenção. No momento em que a narrativa se ancorar na melancolia do sofrimento, na miséria, no lastimável, o empenho se esvairá. “Cada um com seus problemas”. “Já carrego a minha cruz”. “Não dou conta nem das minhas vicissitudes, como conseguiria cuidar de flagelos de outrem?”.
Os mortos desaparecem. Saem de cena e desabitam a memória. Poucos os que se recordam deles. “A vida continua”. Somos levados a assumir a rotina, de repente os que deixaram a aventura terrena já não fazem falta. Um e outro ainda reside no coração dos pais, dos filhos, dos irmãos. Menos um pouco na consciência dos viúvos, a comprovar o ditado “viúvo é quem morre”. Esse um dos prismas de uma sociedade que anestesiou os valores, chegou a amputar alguns, tenta ressuscitar outros. Mas tudo muito superficial, epidérmico, periférico. Leve, incolor, inodora e insensata a nossa maneira contemporânea de conviver.