“Com efeito, todo o presente modo de pensar do homem é modo de pensar em termos de mudança. […] Tudo que fazemos se funda em hipóteses, sujeitas obviamente a mudanças. Tais mudanças decorrem de novos conhecimentos, os novos conhecimentos decorrem de novas experiências e tais novas experiências do fluxo ininterrupto de mudanças…” Eram essas as palavras manuscritas no documento que Anísio Teixeira carregava nos braços, quando a morte , subitamente, negou-lhe a continuidade da vida, em 1971.
Há muitos fatos que abrem as portas da história para receber o legado de Anísio Teixeira, mas esse conceito da dúvida, das novas experiências, da quebra de paradigmas precisa ser considerado. A educação é um processo que requer ousadia. Os acomodados pouco contribuem para ampliar as possibilidades e enxergar além.
Anísio Teixeira marcou sua biografia com a luta renhida pela causa da educação, defendendo o processo democrático de um ensino para todos, permeado pelo intenso desejo de mudança. E a mudança é parceira inseparável da esperança. A mesma esperança espargida pelos ensinamentos do também grande educador, Paulo Freire: “Não posso continuar sendo humano se faço desaparecer em mim a esperança”. O ser humano é impelido pela esperança. Sempre. Historicamente. Atemporal. Daí a atualidade do pensamento de Anísio Teixeira, de Fernando de Azevedo, de Paulo Freire e de tantos outros incansáveis guerreiros na batalha pela educação transformadora, para todos. Tiveram visão e não permitiram que o comodismo do laissez faire os acovardasse.
Notoriamente incomodado pelo caráter dual da educação que ora privilegia, ora desprivilegia, Anísio repudiava o elitismo e a pouca significância de uma educação, cujo currículo e estrutura remetiam a um distanciamento, cada vez mais acentuado, de sua principal finalidade: educar. Educar para a cidadania, intentando a formação de homens plenos e livres. E felizes. Não bastava a avaliação que aferia aprendizagem míope, focada em uma determinada cobrança arbitrária, mutável. Era preciso mais. Mais do que decorar – o que seria exigido por quem, por vezes, nem sabia “o quê” e “o porquê” exigir -, era intento do educador formar para a vida, para a convivência entre os diferentes. E diferentes, somos todos.
Nos seus setenta e um anos de vida, o educador caetitense empenhou-se na reconstrução da educação brasileira, fadada a perpetuar das desigualdades sociais. O maniqueísmo dos detentores de inteligência e dos outros precisava ser superado. E Anísio não teve dúvidas nem medo em fazê-lo. Inteligência não é privilégio de alguns. É potência – embora, às vezes, adormecida – de todos. Como político, ganhou reconhecimento nacional e internacional no pioneirismo de duas ousadas iniciativas, a Escola Nova e a Escola em Tempo Integral, respectivamente. Seu sonho era acordar os que adormeciam e mostrar que o Brasil precisava ser um país para todos.
A devoção persistente por uma educação que não fosse privilégio e a indignação apaixonada de Anísio são, para sempre, admiráveis. A luz de suas ideias ainda resplandece no caminho daqueles que acreditam no poder da educação como força motriz na transformação positiva de uma nação. Daqueles que se lançam, esperançosos, nos exercícios de ressignificação da educação. Educação não é privilégio. Privilégio é palavra que remete a um direito privado, particular e não democrático, como nos ensina sua etimologia. A educação é direito de todos. Foi esse seu tema na vida.
Passa o tempo. Mudam os cenários. Permanecem as dificuldades. O avanço, no campo educacional, a que nosso educador não assistiu, aconteceu. É inegável. Está universalizado o acesso, mas descuidada a qualidade. E descuidar da qualidade implica dar pouco a muitos. E era exatamente isso que Anísio repudiava. O amplo acesso à educação era parte de seu sonho de mudança, mas defendia uma escola voltada às necessidades, à realidade, à formação integral do aluno. Um currículo que contemplasse conteúdos de real significância no universo social e cultural, principalmente, dos menos favorecidos. Esse princípio tem igual validade nas escolas destinadas às classes sociais elevadas. Uma breve análise dos projetos pedagógicos que orientam nossas escolas, sejam públicas, sejam privadas, nos revela o quão distante estamos desse sonho. Sua luta é atual. A mudança que defendia aguarda para ser engendrada. A esperança de fortalecimento da escola pública como caminho primeiro para a edificação de uma nação é viva.
Esse ‘amigo das crianças’, como merecidamente o homenageou Jorge Amado, dedicando-lhe a obra Capitães de Areia, nos apresentou o desafio da escola em tempo integral, voltada ao atendimento de crianças do povo, com a fundação da primeira escola desse modelo no Brasil, a Escola Parque, em Salvador. As instalações contavam com espaços diferenciados como biblioteca, auditório, refeitório, hortas, ambulatório médico, salas para o ensino de artes, quadra esportiva, todos eles voltados para a formação cultural dos alunos.
Além das aulas de conteúdo básico, havia atividades complementares que iam dos trabalhos manuais a aulas de artes plásticas, muitas vezes conduzidas por artistas reconhecidos. Recrutou professores experientes e lhes deu todas as condições justas de trabalho e de execução plena do projeto. “Um funcionário para cada vinte alunos”, discursou seu idealizador na inauguração desse centro destinado a atender 4 mil alunos. A Escola Parque educava, formava, socializava, capacitava, humanizava. A escola de tempo integral era a vida de crianças e jovens que se reencantava por entre as sendas da educação. Era o sonho arquitetado por Anísio que se edificava. Era a escola transformada para e pelo aluno. A escola democratizada. O direito pela educação.
Em que momento, no entanto, o sonho se diluiu? O pioneirismo do projeto da Escola Parque, na América Latina, não se espalhou nem mesmo pelo Brasil. Inequivocamente de alto custo, o projeto de inclusão social pela educação foi esquecido.
“É custoso e caro por que são custosos e caros os objetivos a que visa. Não pode fazer educação barata – como não se pode fazer guerra barata. Sabemos que sem educação não há sobrevivência possível. […] O brasileiro não acredita que a escola eduque. E não acredita porque a escola, que possui até hoje, efetivamente não educou (…). Como acreditar em escolas? Tem razão o povo brasileiro. E para que não tenha razão seria preciso que construíssemos escolas”, provocava Anísio, em 1959, em resposta às críticas que recebia pelo alto investimento em seu projeto. Para ele, a escola deveria ser um local bonito, acolhedor, humano, solidário, com professores felizes e apaixonados pelo ofício de ensinar e por seus alunos.
Não há como passar pela história desse grande educador sem que brote, em cada um de nós, o desejo de mudança, a esperança de uma educação igualitária, humanizadora e integral.
Imaginem se tivéssemos dado continuidade ao sonho e ao trabalho de Anísio Teixeira. Imaginem se nossos políticos do passado tivessem se convencido de que a educação é o passaporte para a liberdade, para o exercício da cidadania. Imaginem, ainda, se as pessoas tivessem se unido para exigir que a escola, centro de luz, fosse o canteiro das obras vivas desta nação. Perdemos muito tempo. Mas é preciso ir além. Aprender com o passado desperdiçado para que o futuro seja real. Nada de discursos dissociados de responsabilidade e compromisso. Que o Brasil possa, depois de ter superado tantos outros desafios – somos um país melhor, hoje, uma potência econômica, tiramos milhões de cidadão da linha da pobreza – ser uma nação que não segregue, não abandone, não exclua nenhum de seus filhos. E essa política pública, cidadã e universal, chama-se educação.
Aos mestres de ontem o respeito pela ousadia; aos de hoje, a cumplicidade pela resistência; e, aos de amanhã, a esperança de que construirão um país com todos e para todos.