Como chegamos até aqui

O descalabro constatável na sociedade contemporânea não começou hoje. É coisa antiga, que se poderia situar no século 9 de nossa era, quando a fé em determinados valores intangíveis foi transferida para a razão. Até então, a crença recaía sobre valores transcendentais. O homem começou a trocar Deus pelo “farol da sensatez”, que ilumina a realidade e permite explicar tudo à luz da própria racionalidade.

A era secular trouxe alguns caracteres ao convívio. Mas a razão todo-poderosa não se tornou imbatível. Ela precisa ser cotejada com a intuição, com as emoções, com o sentimento. Talvez a maior parte das atitudes humanas seja insuscetível de análise à luz da razão. Resulta de impulso, como aquele de comprar mais do que se necessita e, infelizmente, mais do que se pode pagar.

As compras são o exemplo típico das condutas irracionais. Integram o capítulo das compensações mal resolvidas. Para inserir alguma coisa no vácuo deixado pela crença no absoluto, o “homo economicus” compra desmesuradamente. O sonho do brasileiro é ser incluído dentre os consumidores. Até porque de um lado há os consumidores, de outro a legião dos sobreviventes.

Se antigamente a força física se impunha ao mais fraco, hoje é a condição de comprar que sinaliza o status da pessoa. Quando se compra um carro muito caro, ou uma roupa de grife, ou se frequenta um restaurante sofisticado, quer-se mostrar que a ordem é segregar. Se eu posso pagar, sou melhor do que o impedido de comprar por insuficiência de recursos.

O consumismo desenfreado é um mecanismo de segregação interna bem utilizado pela classe ociosa. Os valores que desapareceram foram trocados por aqueles insistentemente impostos pela mídia. Todos querem ser consumidores, porque os demais são perdedores. E perdedores não têm história. Por isso, todos nos submetemos à ditadura da moda, aceitamos a entronização dos produtos, subordinamo-nos aos padrões dos “corpos vistosos”, sequer percebendo a invasão de consciência de que somos vítimas.

Daí o profundo desconforto da sociedade contemporânea, que não é mero “mal-estar”, como viu Freud, mais recentemente Zygmunt Bauman. É uma patologia muito mais grave, que se não vier a ser debelada, apressará o fim da aventura humana sobre este sofrido planeta.