Vale ou vala?

Num desses dias, dentre tantos que passam cada vez mais céleres enquanto a percepção envelhece e se retarda, li um artigo em que se informava que 3.000 mortos foram mandados pra vala comum no estado de São Paulo – o mais rico da nação tupiniquim – nos últimos 15 anos.

Só pra enfatizar que regimes e gentes podem ser diferentes, mas valas e trincheiras podem ser iguais, também li em algum lugar que os vinte anos de ditadura desapareceram com 400 opositores que batalhavam por um ‘Brasil melhor’.

O que mais choca no caso da vala – além da surpresa de algo ainda chocar nestes dias verde-amarelos à prova de choques – é o fato de se tratar de idosos mortos cujos corpos não são reclamados em 72 horas, apesar de carregarem consigo alguma identificação que permitiria que a família fosse avisada…

Segundo tal reportagem, o Ministério Público apurou que os corpos chegam nus, em caixotes de madeira com tampas de papelão, nos cemitérios da Vila Formosa, na cidade de São Paulo, onde são enterrados como indigentes pelo Serviço Funerário Municipal.

A responsabilidade por esses milhares de casos investigados pelo Ministério Público é do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), órgão vinculado à Faculdade de Medicina da USP, o qual alega não haver lei que o obrigue a informar ninguém sobre coisa alguma.

Em outras palavras, enquanto o cidadão desesperado tenta achar a mãe, o pai, o avô ou a avó que sumiram, alguém de endereço incerto e não sabido já fez a “devida verificação” e os mandou enterrar na vala anônima, motivado pelo pouco-caso e pelo desprezo ao seu emprego – um dia pago pelo cadáver – e à dignidade humana…

O que será que ainda será de um povo em cujo país as leis têm a mesma forma exuberante das nações civilizadas graças à agilidade das teclas “Control C” e “Control V”, mas reservam o seu maior rigor ao lavrador pobre e analfabeto que só comerá o feijão que conseguiu plantar se cozinhá-lo no fogão a lenha, queimando os gravetos secos que foi capaz de cortar, e privilegia a grande madeireira?

Como ficará a nação que pune – indignada, escandalosa e vociferante – o carroceiro xucro mal crescido que usa o chicote no seu burro mal amansado que empacou, mas vê com desdém os “friboisde um milhão de amigos”?

Que permite o “saidão” ao seu prisioneiro pobre e bem comportado, mas o “indulto antecipado” aos seus criminosos endinheirados, aloprados descuidados?

Que sobrepõe o lamento da dificuldade em resolver seus problemas ao esforço efetivo na prevenção de seus reveses?

Pobre pátria amada, sufocada por tantos desafios crônicos, tão difíceis de explicar aos seus conterrâneos cada vez mais esclarecidos e exigentes, bem como ao grupo crescente de observadores de fora – e tão insolúveis que nenhum “barbosa” até hoje conseguiu resolver, seja o de Haia ou o daquele pequeno apartamento em Miami…